
Prof. Luís Martins
A partir da última década do século XX a insuficiência cardíaca passou a constituir um dos principais problemas de saúde pública a nível mundial.
Ao longo do tempo a sua definição tem evoluído. Na actualidade, é considerada como uma doença da circulação, habitualmente de progressão lenta, que não se limita ao coração, que pode permanecer compensada durante muitos anos e cuja presença implica uma redução significativa da expectativa de vida.
De um modo muito simplista, podemos dizer que a insuficiência cardíaca é uma síndrome que decorre em consequência da incapacidade do coração bombear quantidades de sangue adequadas à manutenção das necessidades do organismo ou quando essa a manutenção só é possível através do aumento das pressões ventriculares.
Entre estas causas, para além das doenças que alteram a contractilidade miocárdica (ex. isquemia miocárdica), assumem um papel relevante as que produzem sobrecarga de pressão e, consequentemente, provocam aumento da massa muscular cardíaca (hipertrofia ventricular).
Após uma agressão miocárdica, a capacidade cardíaca em impulsionar o sangue diminui. Em resposta à diminuição do débito cardíaco são activados diversos mecanismos de compensação entre os quais a libertação endógena de substâncias neuro-hormonais vasoconstritoras. Nas fases iniciais, a activação destes mecanismos de regulação neuro-humoral constitui uma resposta compensadora, benéfica, cujo objectivo é o de preservar a homeostase circulatória.
No entanto, a sua activação crónica passa a constituir ela própria uma agressão suplementar ao coração e aos vasos: o aumento da frequência cardíaca, a sobrecarga de volume (retenção hídrica) e a elevação da pós-carga do ventrículo esquerdo daí resultantes conduzem inexoravelmente ao declínio progressivo da função ventricular esquerda e à progressão da insuficiência cardíaca previamente existente. Assim, a partir de determinado momento, a insuficiência cardíaca autoperpetua-se, passando a ser uma doença dos próprios mecanismos de compensação.
Das sobrecargas de pressão impostas ao coração, sobressai a hipertensão arterial (HTA), designação médica da pressão arterial elevada. É uma situação que, quando não tratada, aumenta significativamente o risco de ocorrência de eventos cardiovasculares adversos.
Estes eventos devem-se essencialmente às lesões que a pressão arterial elevada provoca nos chamados órgãos alvo: artérias, coração, rins, cérebro e olhos.
Por lesões de órgãos alvo entendem-se as alterações estruturais que acontecem como consequência directa da exposição a pressões arteriais persistentemente elevadas. Inicialmente, muitos órgãos estão protegidos das acções deletérias da elevação da pressão arterial, nomeadamente através da chamada autorregulação.
Este mecanismo, permitindo uma adaptação a pressões sanguíneas elevadas, visa a manutenção de um fluxo tecidular normal. No entanto, se o aumento da pressão arterial persistir, vão surgir alterações estruturais adaptativas nomeadamente ao nível das artérias e do coração, processo frequentemente designado por remodelagem cardiovascular.
De salientar que essas lesões ocorrem em contínuo, iniciando-se com a presença da HTA e de outros factores de risco, manifestam-se por alterações precoces como a disfunção endotelial e a remodelagem vascular e evoluem até aos eventos cardiovasculares, tais como o enfarte do miocárdio, o acidente vascular cerebral e a insuficiência cardíaca.
O coração do doente hipertenso, de modo a manter uma perfusão tecidular adequada, responde à sobrecarga hemodinâmica provocada pela elevação da pós-carga (resultante dos aumentos da resistência vascular periférica e da rigidez arterial) desenvolvendo hipertrofia miocárdica, disfunção ventricular diastólica e, mais tardiamente, disfunção sistólica.
Assim, neste contexto, a remodelagem cardíaca, constituída pelas modificações miocárdicas que ocorrem a nível molecular e celular, quer nos miócitos quer no interstício, surge como resposta de adaptação estrutural à sobrecarga de pressão crónica imposta ao coração, tentando assim preservar a manutenção da eficiência mecânica do ventrículo esquerdo. Estas adaptações manifestam-se clinicamente por alterações no tamanho, na massa, na geometria e na função do coração.
A hipertrofia ventricular esquerda é um fenómeno cuja importância como factor de risco cardiovascular é conhecida desde os finais da década de 60. Ao longo das últimas décadas, a sua relação com o aumento da probabilidade de morte prematura e/ou de ocorrência de eventos cardiovasculares adversos tem sido sistematicamente comprovada em diferentes amostras populacionais, quer de normotensos quer de hipertensos.
Com o passar do tempo, um coração hipertrofiado fica mais rígido e acaba por apresentar uma contractilidade diminuída o que ao comprometer a sua função de bomba conduz ao quadro de insuficiência cardíaca.
Em resumo, a insuficiência cardíaca é um processo dinâmico que envolve a contínua reorganização estrutural e funcional do coração - remodelagem cardíaca - em resposta a diversos estímulos e a agressões (stresses mecânicos, hormonas, neurotransmissores e factores de crescimento). Uma das patologias que mais frequentemente conduzem a este quadro é sem dúvida a hipertensão arterial não tratada.
As principais causas de insuficiência cardíaca são:
1) as doenças que alteram a contractilidade do miocárdio,
2) as doenças que exigem um esforço maior ao músculo cardíaco (por sobrecarga de pressão ou por sobrecarga de volume) e,
3) as doenças que perturbam o enchimento cardíaco.
Prof. Luís Martins,
MDPhd,
Presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão,
Director do Serviço de Cardiologia do Hospital S Sebastião e
Director da Faculdade das Ciências da Saúde,
Universidade Fernando Pessoa
Fonte: Saúde em Revista